Jogo pesado em Bancoque
O que esperar das negociações internacionais sobre clima na próxima sessão da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima?
Por Morrow Gaines Campbell III, Especialista de Clima do Vitae Civilis
Está prestes a começar a primeira reunião de negociações da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC) após a 16ª Conferência das Partes em Cancun (CoP-16), em dezembro de 2010. Esta reunião Intersessional acontecerá na unidade permanente das Nações Unidas em Bancoque nos dias 3 a 8 de abril. As agendas oficiais do Grupo de Trabalho Ad Hoc para Ação Cooperativa de Longo Prazo (AWG-LCA, em inglês) e do Grupo de Trabalho Ad Hoc para o Protocolo de Quioto podem ser vistas no site da CQNUMC. Mas, uma leitura atenta e objetiva das agendas não transmite, nem de longe, o que está em jogo em Bancoque.
O temeroso fantasma de Copenhagen foi devidamente exorcizado em Cancun e é verdade que as portas para o futuro das negociações e do regime não foram trancadas. Mesmo assim, escondem muitas armadilhas e algumas são entradas para um labirinto com grau de dificuldade muito elevado. A chance de avançar significativamente nas áreas de adaptação, florestas, transferência de tecnologias e finanças continuam reais e um resultado justo, ambicioso e legalmente vinculante ainda é possível antes do final do primeiro período de compromisso do Protocolo de Quioto (31 de dezembro de 2012). Mas, os desafios são imensos. Citamos apenas três: o abismo das giga-toneladas, o problema dos compromissos versus as promessas e o 2º período de compromisso do Protocolo de Quioto.
O abismo das giga-toneladas é muito simples e ao mesmo tempo extraordinariamente complexo. A parte simples é a seguinte:
Na CoP-15, em Copenhagen, os países desenvolvidos, que têm a responsabilidade histórica por enviar a maior parte dos gases de efeito estufa para a atmosfera desde o início da era industrial, fizeram promessas de reduzir as suas emissões. Mas, se fôssemos somar essas promessas todas e comparar com o tamanho da redução que a ciência diz necessária para manter o aumento de temperatura média do planeta Terra num nível inferior a 2ºC, comparada com a era pré-industrial, descobriríamos que faltam giga-toneladas de emissões a serem retiradas da atmosfera. Dependendo dos parâmetros usados no cálculo, esta diferença pode ser de 5 a 8 giga-toneladas ou mais.
A parte complexa do problema assusta mais ainda:
Voltemos a Copenhagen – CoP-15. Primeiro: o nefasto documento chamado Acordo de Copenhagen é um natimorto. Na verdade, é um documento elaborado por um restrito número de países – 24 num universo de 194 países membros da Convenção de Clima (12%), portanto é um documento que não foi discutido ou negociado palas Partes, um procedimento normal em todas as convenções das Nações Unidas. Portanto, não é um “Acordo” sob qualquer interpretação da palavra. Segundo, os países que se associaram ao documento, fizeram promessas de redução de emissões de gases de efeito estufa.
Estas promessas são vazias porque o documento não tem valor nenhum a não ser uma declaração política. Sendo assim, nenhum país tem obrigação de cumprir o que prometeu e mesmo que tenha uma “fiscalização” futura das promessas feitas, não haverá consequência alguma se forem cumpridas ou não. Isso torna aquela diferença de giga-toneladas, citada acima, ainda menos confiável. Ou seja, na realidade, a diferença pode ser muito maior. Segundo: quem vai cobrir a diferença e como? As ações necessárias para reduzir emissões de gases de efeito estufa são fáceis de identificar. Elas incluem coisas óbvias como: utilizar fontes de energia renovável no lugar dos combustíveis fósseis; reduzir as perdas de energia e aumentar a eficiência da sua utilização; estimular o uso de transporte coletivo e diminuir o transporte individual e eliminar o desmatamento das florestas. Mas qualquer destas ações tem consequências, algumas evidentes e outras nem tanto. O ponto principal é que exigem mexer com os modelos econômicos e de consumo predominantes. Estes modelos, embora predatórios, são o resultado das aspirações das pessoas, das empresas, instituições, governos e estados. Para mudar estes hábitos e aspirações, sacrifícios serão necessários. O pior é que o ônus da mudança não será limitado apenas aos países desenvolvidos. Mesmo que fizessem tudo que deveriam fazer, esse tudo não será suficiente. Vai sobrar para os países em desenvolvimento e entre eles os mais avançados como o Brasil, África do Sul, Índia e China. Por estes motivos, avanços nas negociações em matéria de mitigação serão muito difíceis.
Em Bancoque é preciso que os países desenvolvidos comecem a por em prática o que disseram em Cancun; como, por exemplo, reconhecer que as suas emissões deveriam ser entre 25 a 45% abaixo do nível de 1990 até 2020. Outro ponto importantíssimo se refere às regras e metodologias de contagem das emissões de LULUCF (uso da terra e mudança no uso da terra e florestas). Atualmente as regras que estão na mesa dos negociadores contêm muitas oportunidades de burlar o sistema e efetivamente não contar todas as emissões provenientes de LULUCF. Isto tem que ser combatido e corrigido porque, senão, essas emissões podem até crescer e anular os efeitos de outros mecanismos com REDD (Redução de Emissões de Desmatamento de Degradação de Florestas), por exemplo.
Em Bancoque os países deveriam discutir e acordar sobre um processo para definir um ano limite para o crescimento das emissões globais e uma meta global de emissões de longo prazo. O pico das emissões globais não deveria passar 2015 e em 2050 o mundo deveria ter um nível de emissões pelo menos 80% inferior ao nível de 1990.
O dilema da escolha entre os compromissos versus as promessas de redução das emissões de gases de efeito estufa pode ser a diferença entre um retrocesso irreparável e um avanço para frear o aquecimento global e a segurança de vida para bilhões de pessoas no futuro.
Mais uma vez, precisamos retornar ao inverno de 2009 em Copenhagen para chegar às raízes do problema. A grande expectativa mundial (realista ou não) era que as obrigações de redução de emissões de gases de efeito estufa para o 2º Período de Compromisso, previsto no Protocolo de Quioto seriam negociados. Esta negociação evitaria o perigo de um vazio entre o 1º e 2º Período de Compromisso, dando tempo hábil aos Estados Membros da CQNUMC para submeter estes compromissos aos respectivos processos nacionais de ratificação. Mas, por muitos motivos como péssima liderança por parte do Governo Dinamarquês, crescente desconfiança entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos e imensa perda de tempo desde que fora definido o Plano de Ação de Bali na CoP13 em 2007, a tão esperada negociação do 2º Período de Compromisso não aconteceu. No seu lugar apareceu o já referido Acordo de Copenhagen. No seu parágrafo 4 diz: “As Partes no Anexo I comprometem-se a implementar individual ou conjuntamente as metas quantificadas de emissões, válidas para o conjunto da economia, para 2020…”. Mas, como o Acordo de Copenhagen não teve o consenso do Plenário as metas de redução inscritas no acordo não tem valor além de uma promessa política e, todos nós sabemos quanto valem as promessas políticas. Fato é que o Acordo de Copenhagen rompeu com as tradições processuais das Nações Unidas e estabeleceu um precedente perigoso para o futuro do regime das negociações internacionais de clima.
Desde Copenhagen, os países industrializados têm feito um esforço de convencer o mundo que é melhor fazer promessas de redução de emissões de gases de efeito estufa e submetê-las a revisões periódicas do que assumir compromissos legalmente vinculantes por meio de tratados ou emendas. Esta estratégia ganhou força na CoP-16 em Cancun, em dezembro de 2010, apesar da resistência dos países menos desenvolvidos, os países insulares e os países mais vulneráveis.
A sociedade civil está diante de um dilema muito sério. Ou aceitamos o jogo dos países desenvolvidos e lutamos para um regime rigoroso e efetivo de “promessas de reduções de emissões com revisões periódicas” ou rejeitamos esta tentativa de enfraquecer o regime e lutamos para colocar as negociações de volta na trilha de um acordo justo, ambicioso e legalmente vinculante. É uma escolha muito difícil até porque dentro da própria sociedade civil não existe unanimidade. Uns preferem um caminho mais realista aceitando o regime de “promessas”, já outros defendem com obstinação a nossa obrigação de defender os interesses dos povos mais vulneráveis, pobres e menos capazes de enfrentar as nefastas consequências do aquecimento global e consequentes mudanças de clima. O tempo é curto e muitas decisões duras e urgentes terão que ser tomadas.
A definição do 2º Período de Compromisso do Protocolo de Quioto é uma destas decisões estratégicas que terá um impacto de incalculáveis consequências sobre a vida neste planeta. Lembrando: o primeiro período de compromissos (1PC)começou no dia 1 de janeiro de 2008 e terminará no dia 31 de dezembro de 2012; o 2PC deverá começar no dia 1 de janeiro de 2013.
Em 2010, o número de países que resistiam ao Segundo Período de Compromisso foi diminuindo até que em Cancun restavam apenas Rússia, Canadá e Japão sendo que este último foi categórico na sua rejeição tanto no contexto doméstico (o Primeiro Ministro fez um pronunciamento a sobre isso no Parlamento) tornando mais contundente a posição pública do Japão. Entretanto, algumas coisas importantes aconteceram. O Governo Canadense perdeu um voto de confiança no Parlamento em março deste ano. Novas eleições estão previstas para o início de maio. Portanto, a posição ultra-conservadora do Primeiro Ministro Steven Harper está em jogo e isto pode ter desdobramentos nas negociações internacionais de clima. No Japão, é impossível imaginar neste momento o que vai acontecer com a posição inflexível de antes da tripla tragédia de terremoto, tsunami e desastre nuclear. A Rússia já deu sutis sinais de flexibilidade, mas nada que possa ser interpretado como mudança radical oposição ao Segundo Período de Compromisso.
O Protocolo de Quioto é um instrumento previsto na Convenção de Clima. Não foi um bom tratado. Mas, é o que temos e foi feito de forma correta e com o consenso dos países signatários da Convenção. Foi ratificado pelos mesmos e está em vigor. É a única garantia que os países em desenvolvimento, os países mais vulneráveis e os países insulares têm que a comunidade internacional agirá para protegê-los contra os efeitos ameaçadores das mudanças de clima.
Os riscos são dois: a) o risco de um vazio entre o Primeiro e o Segundo Período de Compromisso; um intervalo durante o qual nenhum país teria qualquer obrigação ou responsabilidade legal de reduzir as suas emissões de gases de efeito estufa e b) não ter mesmo um Segundo Período de Compromisso. Qualquer destes dois cenários é inaceitável.
Na ausência de um Segundo Período de Compromisso, a única alternativa será apostar as esperanças na capacidade dos governos nacionais de implementar ambiciosas medidas voluntárias de mitigação. Mas, mesmo que todos eles tivessem de repente uma vontade de fazer o máximo, os países e povos menos responsáveis pela situação em que o mundo se encontra, ficariam sem amparo tecnológico e financeiro. O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL perde significado sem o Segundo Período de Compromisso. O MDL permite que países industrializados financiem ações de mitigação em países em desenvolvimento e que as respectivas reduções de emissões, traduzidos em certificados de carbono, sejam creditados na conta das emissões do país financiador. Ora, sem um compromisso legalmente vinculante, qual é o interesse de um país desenvolvido fazer este tipo de financiamento? Uma perversa consequência desta situação é que os tão criticados corretores do mercado de carbono podem ser fortes aliados para garantir a continuidade do regime do Protocolo de Quioto. O mundo precisa de um Segundo Período de Compromisso com metas ambiciosas e em linha com as demandas da ciência. A hora de um posicionamento radical por parte da sociedade civil está se aproximando. Será em Bancoque, Bonn, Durban ou no apagar das luzes na CoP-18 em dezembro de 2012.
Qualquer discussão sobre o Segundo Período de Compromisso traz no seu bojo o caso dos Estados Unidos. Isto significa que até Durban deveríamos ter um instrumento complementar que integra os Estados Unidos. É uma tarefa dificílima porque o sistema de governança daquele país não admite tratados internacionais, a não ser que sejam sancionados pelo Senado Norte Americana. A administração Obama não tem os votos suficientes para fazer isso.
Para finalizar, estes são alguns dos desafios de 2011 e eles começam a ser discutidos esta semana em Bancoque. Os interessados podem acompanhar as negociações direto pelo Webcast http://unfccc.int/2860.php . Vejam também os boletins analíticos ECO da Climate Action Network.




-
http://jrussar.wordpress.com/2011/04/02/jogo-pesado-em-bancoque/ Jogo pesado em Bancoque « Blog da Juliana Russar
About the author
Juliana RussarApaixonada por política internacional e desenvolvimento sustentável. Sou formada em Relações Internacionais, tenho 26 anos, vivo em São Paulo e atualmente sou coordenadora da 350.org Brasil e faço parte do programa Oxfam International Youth Partnerships. Acompanho as negociações desde 2007. Essa é a minha quinta Conferência das Partes.